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  • Foto do escritorAna Salviatti

O povo da Mercadoria

Atualizado: 8 de nov. de 2019



Joseca Yanomami – Tempestade Sob a Floresta (2015)


(...) Os brancos costumam empilhar seus bens de modo mesquinho e guardá-los trancados. Por sinal, sempre levam com eles muitas chaves, que são as das casas em que escondem seus pertences. Vivem com medo de ser roubados. E, ao final, só os dão com muita má vontade, ou sobretudo os trocam por peles de papel que também acumulam, pensando em se tornar grandes homens. Devem pensar, com satisfação: “Faço parte do povo da mercadoria e das fábricas! Só eu possuo todas essas coisas! Sou inteligente! Sou um homem importante, sou rico!”.


Quando eu era jovem e visitei pela primeira vez a cidade de Manaus e depois Boa Vista, aqueles amontoados de mercadorias empoeiradas me deixavam confuso. Perguntava a mim mesmo por que razão tamanha quantidade de ferros de machado e redes, fabricados havia tanto tempo, ficavam envelhecendo assim, atulhados sobre tábuas até mofar, sem ser distribuídos para ninguém.


A comida dos brancos não tem um valor tão grande quanto eles pretendem! Como a nossa, ela desaparece assim que é engolida e acaba virando fezes! Suas mercadorias também não são tão preciosas quanto eles dizem. É só o pavor que eles têm de sentir falta delas que os faz aumentar seu valor. Uma vez velhos e cegos, dará mesmo dó vê-los ainda agarrados a elas! Mas, quando morrerem, vão ter de largar todos esses objetos de qualquer jeito! Aí vão abandoná-los quer queiram quer não e seus parentes não vão parar de se desentender para pegá-los. Isso tudo é ruim! Fabricando e manuseando tantas mercadorias, os brancos devem pensar que ganham muito renome. Mas não é nada disso. Para que assim fosse, teriam de ser menos mesquinhos! Aí, quem sabe, gente distante, como nós, acabaria falando deles com contentamento e os guar-daria no pensamento.


Nós, habitantes da floresta, só gostamos de lembrar dos homens generosos. Por isso temos poucos bens e estamos satisfeitos assim. Não queremos possuir grandes quantidades de mercadoria. Isso confundiria nossa mente. Ficaríamos como os brancos. Estaríamos sempre preocupados: “Awei! Quero ter aquele objeto! E também quero aquele outro, e o outro, e mais aquele!”. Não acabaria nunca! Então, a nós basta o pouco que temos. Não queremos arrancar os minérios da terra, nem que suas fumaças de epidemia acabem caindo sobre nós! Queremos que a floresta continue silenciosa e que o céu continue claro, para podermos avistar as estrelas quando a noite cai. Os brancos já têm metal suficiente para fabricar suas mercadorias e máquinas; terra para plantar sua comida; tecidos para se cobrir; carros e aviões para se deslocar. Apesar disso, agora cobiçam o metal de nossa floresta, para fabricar ainda mais coisas, e o sopro maléfico de suas fábricas está se espalhando por toda parte.


Davi Kopenawa — A queda do Céu — A paixão pela mercadoria.





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