A Boitempo Editorial promove há alguns anos, sempre na primeira semana de Maio, o DIA M, uma série de palestras com o propósito de trazer a atualidade do pensamento do autor que na date de hoje (5/5/2021) estaria fazendo 203 anos de idade, - evidentemente um imortal.
Como prometido, posto aqui a fala apresentada por mim hoje na mesa em que dividi com José Paulo Neto e que contou com a mediação de Rita von Hunty.
A mesa foi transmitida pelo canal da Boitempo, o Tv Boitempo e no canal da própria Rita, o Tempero Drag, ambos no Youtube e você pode assistir o vídeo nos seguintes links:
Tv Boitempo: https://youtu.be/bkg5V_eI8jU
Tempero Drag: https://youtu.be/Fkp9n068bG0
Deixo registrado que este texto é um exercício baseado diretamente no livro "A filosofia a partir de seus problemas", de Mario Porta, professor de filosofia da PUC São Paulo, publicado pela Edições Loyola. Assim, ao leitor atento será possível observar passagens desta obra no texto que segue abaixo.
Reforço mais uma vez a leitura deste livro de Porta, assim como o livro recém lançado pelo professor José Paulo Neto, pela editora Boitempo, "Karl Marx, uma biografia". Ao final do texto volto com outras sugestões de leitura.
Depois desta apresentação do professor Zé Paulo Neto em que toda a trajetória de Marx foi mencionada, eu montei uma apresentação que busca falar sobre O Capital, em particular, em como ler O Capital.
Já compreendemos que Karl Marx tinha uma formação excepcional. Ele abandonou a faculdade de direito, se doutorou em filosofia e nunca, em momento algum, deixou o debate teórico filosófico de lado. Quando ele fala que por sorte encontrou um livro do Hegel enquanto redigia O Capital ele está sendo um tremendo sacripantas.
Dito isso, O Capital é o trabalho de maturidade de um autor que se propôs abordar sistematicamente o problema / a questão que o acompanhou durante toda a sua vida. Assim, o contato inicial com o Livro é caótico, como deveria de ser.
Então, como ler um livro como O Capital?
Não é possível entender O Capital se não se entendermos o “problema” que o autor buscou abordar. O núcleo essencial do livro é formado pelo problema, ou problemas, e as teses, ou as explicações, que o autor deu a eles.
Assim, devemos começar nossa trajetória pelO` Capital da seguinte maneira: qual é o problema por ele proposto?; qual é a questão que Marx que responder nesse livro?. Entender O Capital é compreendê-lo como resposta ao problema que foi colocado pelo autor.
Quanto mais conhecemos a obra de Marx, mais nos damos conta de que os problemas levantados ao longo da sua vida são aspectos de uma mesma questão. Assim, não devemos nos perguntar qual é o problema de Marx em O Capital, mas qual é “o” problema de Marx.
Você não vai ler O Capital para “saber” o que Marx disse, mas para entender as teses, as soluções, os argumentos sobre aquele problema muitíssimo bem definido pelo autor.
Então, O Capital não será uma leitura descritiva de fatos, eventos, histórias, situações. Se você ler O Capital como se estivesse lendo um conto, ou mesmo um livro de História, você não perceberá "o problema", e sua compreensão sobre o livro irá pôr ladeira a baixo.
Nossa prioridade ao ler O Capital é estabelecermos com exatidão qual é o problema que Marx está se propondo resolver, e ele faz isso muitíssimo bem, ou seja, o problema que Marx quer tratar é muito bem definido.
- Professora, mas Marx não tem nenhuma palavra aos empreendedores?
- Professora, mas ele não fala como regular o mercado?
-Nenhuma passagem sobre qual melhor caminho para a macroeconomia, professor?
NOP.
Quais são os argumentos fundamentais usados por Marx? Por quê Marx escolhe uma resposta e não outra? O Capital é o trabalho de maturidade de um autor que passou a vida toda formulando o problema que ele vai responder nO Capital.
Bom, então, como fazemos para entender esse livro?
Você já entendeu que não será possível folear as páginas dO Capital enquanto está na praia, ou ainda enquanto se distrai tomando um sol. Ler o texto de O Capital é analisar o texto, ou seja, separamos, distinguimos e diferenciamos os vários níveis e as aspectos do que está sendo dito no livro. Analisar é observar o problema, o todo em questão, e conseguir distinguir suas múltiplas partes.
Pois bem, entender é ter a compreensão literal do que está escrito. É ser capaz de repetir o texto com as suas palavras, é traduzir o que está escrito sem sair do que foi escrito. É oferecer uma nova versão do mesmo texto, do mesmo conteúdo com outras palavras. E eu só posso produzir uma tradução se eu tiver entendido o tal sentido do texto.
Assim, entender é deixar e ter claro o sentido do texto, não o porquê o texto foi escrito, mas o que é dito no texto. Eu não quero saber o porquê ele escreveu aquilo, eu quero entender o que foi que ele escreveu.
Muito importante destacar que o sentido do texto nunca está oculto, ou fora do texto, ou não dito no texto. O que o autor queria dizer, ele disse. Assim, o que Marx quis dizer em O Capital está escrito em O Capital.
Se você não está entendendo o livro tem uma série de fatores importantes para levarmos em consideração. Em geral, a coisa se resolve quando a gente volta e relê o trecho incompreendido. Mas muitas vezes nem sabemos o que não entendemos do texto. E aí que mora o objetivo da minha fala.
Mais importante do que não entender uma coisa é entender o porquê não a entendo. O que exatamente você não entendeu do texto? Assim, devemos ter em mente que o problema não está no conteúdo do texto, mas na falta de conhecimentos adequados da nossa parte para compreendê-lo.
Como indivíduos, nós temos uma série de pressupostos, de formulações e expectativas quando lemos absolutamente qualquer coisa, ainda mais O Capital. Então, a primeira coisa que você vai fazer é suspender o juízo. Isso, deixe o autor falar por si, não coloque sentido no texto, escute o sentido do texto.
Nisso quero dizer que muitas vezes vamos ao texto munidos de nossas próprias crenças, interpretações, como disse, expectativas, tão obvias, um senso comum que sequer percebemos.
Pois bem, para compreender O Capital nos defrontamos com as nossas limitações de mundo, as nossas próprias questões existenciais, nos deparamos com os limites da nossa consciência das coisas e dos eventos. O incomodo gerado ao ler não é pequeno, o autor está falando sobre coisas que sequer você havia pensado, e pior, muitas vezes, você as havia tomado como ponto de partida.
Nessas situações devemos tomar a seguinte atitude: ou suspendemos provisoriamente a leitura do texto principal/original para lermos materiais que nos forneçam o instrumental para compreendê-lo, ou fazemos a leitura dele apoiada nos materiais que nos oferecem essas ferramentas. Aí que o livro do professor José Paulo Neto se torna essencial. Então, para ler um texto como O Capital, não tem jeito, o conhecimento prévio é imprescindível.
Pai amado, a função do livro do professor Zé Paulo, quem sou eu para falar isso, mas enfim, é nos introduzir a forma de pensar de Marx, orientar nossa leitura, alertar possíveis lacunas, corrigir nossa intepretação, focar nossa compreensão conceitual. É graças a maturidade intelectual dele, do Zé Paulo, que em momento algum nos vai ser dito que é simples a tarefa, pelo contrário, ele vai nos alertar das dificuldades e nos oferecer os instrumentos para ultrapassá-las.
Se você não entendeu o raio da passagem, tá certo, é isso mesmo, você não entendeu e tudo bem. O que você vai fazer é pegar a passagem e analisar, abrir o sentido dela, substituir os termos pelos que você agora tem como referência instrumental e reescrever.
Em textos como O Capital as palavras não têm o uso que corriqueiramente damos a elas. O texto tem um vocabulário próprio. Por exemplo, em algumas passagens do livro do professor aparecem alguns termos que possuem significado bastante específico dentro da obra. Assim, devemos ter em mente, qual o sentido deste termo em particular para o nosso autor? A que ele está se referindo, ou pior, ele está se referindo a alguém?
Determinação, totalidade, categorias, qualidade, quantidade, medida...
Elas têm um significado para além do uso comum.
Um texto como O Capital é escrito também como uma interlocução com outras figuras teóricas. Se não está explícito no texto, o que acontece na enormidade dos casos, e O Capital é um exemplo perfeito disso, você que não percebeu a referência. E esse é outro bom motivo para você buscar conhecimento prévio para embarcar na leitura.
Se continuamos presos as nossas concepções vamos acreditar ter entendido o texto da “nossa forma”, “minha leitura”. Você pode ter a ilusão de ter entendido o que está sendo dito e nem desconfiar que na verdade, entendeu foi nada. E pior, você pode, ao final da leitura, ter acabado de inventar a roda. Afinal, quando é que se entende o que o autor queria dizer?
Enquanto você lê, você adianta e/ou prevê raciocínio do parágrafo seguinte? Geralmente os parágrafos são construídos de forma conexa. Se Sim, então você pegou o sentido do texto. Se Não? A afirmação do parágrafo é completamente absurda e contradiz o que estava entendendo. Ótimo, volte duas casas porque em algum momento você tomou algo errado por certo.
E o mais importante, aquela parte que você entendeu faz sentido com o restante? E o restante do texto faz sentido com aquela parte? A parte pelo todo, o todo pela parte. Compreender um texto é enxergar o texto pelos óculos do autor.
Entender um texto não significa abandonar sua visão de mundo, mas é saber que o que você pensa ou pensava era incompatível com o que o autor exprime no seu texto e tudo bem. Se você for deformar uma compreensão do autor para fazer caber no seu universo ficará pior a emenda que o soneto.
Caminhando para o final
O Capital abre necessariamente nossas perspectivas sobre o tema que Marx se propõe trabalhar. Era está a proposta do Livro, oferecer um universo, uma totalidade para que os leitores, pesquisadores futuros, munidos das mesmas ferramentas, pudessem seguir suas pesquisas.
Acabou de ler, pegue um gravador, pegue lápis e caneta e reconstrua o problema daquele trecho, daquele capítulo, daquela seção. Só assim você terá o acumulo da compreensão daquela passagem.
É isso.
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Aproveito a ocasião para indicar outros livros e materiais de suma importância para compreensão da Obra:
Porta:
O livro que baseou o texto aqui reproduzido "A Filosofia a partir de seus problemas" deu origem a um curso oferecido pelo professor Mario Porta e seu grupo de estudos, junto à Escola do Parlamento da Câmara de São Paulo, o curso está disponível: https://www.saopaulo.sp.leg.br/escoladoparlamento/cursos/cursos-anteriores/cursos-realizados-em-2020/a-filosofia-a-partir-de-seus-problemas/
Rosdolsky:
Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Editora Contraponto. Neste livro o leitor já familiarizado e interessado em compreender O Capital encontrará o instrumental teórico e referencial necessário para compreender posteriormente os três livros de Marx.
Grespan:
Marx: uma introdução. Editora Bomtempo. Este é o livro que indico sempre que posso para os alunos interessados na leitura de O Capital. De escrita e compreensão fácil, o autor nos insere no universo da Obra e na metodologia de apresentação adotada por Marx: a dialética.
O negativo do capital: o conceito de crise na crítica de Marx à economia política. Editora Expressão Popular.
Neste livro o leitor que já acompanha a leitura de O Capital irá se aprofundar em um aspecto central na elaboração da obra, o conceito de Crise.
Müller:
Exposição e método dialético em O Capital. Este livro foi tema da postagem anterior. Este artigo recomendo fortemente a todos os que desejam compreender o método dialético utilizado em Marx.
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