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‘O incêndio não começou e não terminará na estátua do Borba Gato’

03/08/21

por Ana Paula Salviatti, Anelize Vergara, Arthur Avila, Bruno Galeano de Oliveira Gonçalves, Bruno Rosa Athayde, Dennis Almeida, Fernando Pureza, Fernando Viana, Lucas Pedretti, Luís Filipe Silvério Lima, Matheus Vaz, Matias Pinto, Paulo Pachá, Rodrigo Nagem de Aragão e Thomas Nizio, especial para a Ponte


Ilustração Antonio Junião / Ponte Jornalismo


Historiadores do Coletivo História a Contrapelo explicam os processos culturais e políticos por trás das estátuas erguidas e derrubadas


Este texto faz parte do esforço de nós historiadores, reunidos sob o Coletivo História a Contrapelo, em desinterditar o debate sobre história e memória no Brasil diante de frequentes equívocos, insistentemente reproduzidos em debates sobre eventos recentes.

Na semana passada, muito se falou sobre a estátua do bandeirante Borba Gato, inaugurada em São Paulo em 1963. Esta estátua faz parte de um conjunto de homenagens que constituem uma narrativa específica e extremamente parcial sobre a identidade nacional, segundo a qual os bandeirantes paulistas são uma espécie de heróis desbravadores, protagonistas da expansão territorial brasileira, durante o período da colonização.


A História não é monopólio de acadêmicos ou políticos, ela é a contínua trajetória das experiências sociais e por isso sua representação é objeto de disputa dos mais diversos setores sociais.


Como historiadores, buscamos desobstruir o debate sobre a imutabilidade das representações sobre a história. No senso comum, é habitual que a memória seja tomada como sinônimo de História. Essa confusão explica porque, muitas vezes, o debate público ignora a diferença entre disputa pela memória e apagamento histórico. Estátuas e monumentos não são feitos por acaso, mas correspondem à escolha do que e de quem deveria ser recordado e homenageado. Tais escolhas foram feitas por aqueles que, em cada momento específico, detinham poder suficiente para impor sua visão ao espaço público.


Estátuas e monumentos não apenas estabelecem quem são os “grandes homens” e os “eventos importantes” do passado, mas também como devemos entendê-los. Estátuas e monumentos não apenas fazem referência a um fato do passado mas, acima de tudo, produzem um fato novo: uma representação sobre o passado que circula socialmente e estrutura a compreensão do presente. Isto é, inscrevem uma memória específica no presente. Estátuas e monumentos são representações do passado, não o passado em si cristalizado em um busto de mármore. 


O ato de derrubar uma estátua, portanto, jamais poderia ser entendido como uma forma de apagar o passado. Ao se derrubar uma estátua se está disputando uma certa representação do passado. Assim como a sua instalação, a derrubada de uma estátua também é um ato histórico que traduz uma gama de conflitos políticos, formas de consciência e expressões de poder que refletem um dado momento histórico.


Sabemos que, desde 2016, o debate sobre o lugar da memória nos espaços públicos foi retomado ao serem colocadas em questão estátuas e homenagens aos soldados confederados da Guerra Civil Americana. Ano passado estes debates tomaram corpo com o movimento Black Lives Matter, quando da decapitação da estátua de Cristóvão Colombo, e se seguiu com a derrubada da estátua do traficante de escravos e filantropo inglês Edward Colston. A destituição desses monumentos se multiplicou ao redor do mundo e não tardaria em chegar ao Brasil.


Tais ações foram observadas pela imprensa e articulistas brasileiros com um misto de reserva e espanto civilizacional. Entretanto, outros setores da sociedade brasileira reagiram de forma diferente, destacando a inadequação atual da homenagem de determinados personagens. Além disso, tais monumentos também reproduzem um apagamento de parte da história. Este apagamento diz respeito justamente a determinados grupos que, agora, disputam publicamente essas memórias. Se assim o fazem é porque são sistematicamente invisibilizados, tanto na memória coletiva quanto na disputa política.


O debate antirracista que se intensificou nos últimos anos nos coloca a pensar: quem são as figuras homenageadas em nossos países? Na sua cidade, quais são os grupos sociais e políticos lembrados nas principais praças e avenidas?


Eis que, em São Paulo, uma estátua que homenageia um desses “grandes homens” tornou-se objeto de uma explícita disputa por sua memória. Recorda-se agora que entre os “grandes feitos” desse “grande homem” conta-se também o dizimar de populações indígenas inteiras, o estupro sistemático de mulheres, além, é claro, da sua metódica violência simbólica.


O Coletivo Revolução Periférica assumiu a autoria do incêndio e deu início a um intenso debate. O ato desencadeou uma reação inaudita, em que o debate pautado na imprensa deu-se em torno da defesa dos valores – menos históricos do que fundacionais – representados no monumento e contra – um suposto e sem fundamento – “apagamento da história” cometido pelos seus críticos. A resposta das autoridades foi dupla: por um lado, buscou a interdição do debate com a prisão ilegal do ativista Paulo Galo (membro do Coletivo Revolução Periférica) e Géssica Silva Barbosa – sua esposa, que nem sequer estava presente na ação. Por outro lado, iniciou uma corrida por limpar a estátua de qualquer mancha e assim restaurar a resplandecente memória bandeirante do estado e do país.


Essa defesa da estátua de Borba Gato demonstra claramente que essas disputas pela memória têm menos a ver com o passado histórico e mais com o presente social que se quer legitimar (ou perpetuar). A estátua não é uma obra contemporânea aos eventos que retrata; ao contrário, foi erguida na segunda metade do século XX, na esteira da produção de uma nova narrativa que conferiu centralidade às bandeiras como antessala de um projeto de país capitaneado por São Paulo. A estátua de Borba Gato opera, portanto, no território da mitografia. Foi nesse território que se criou um Borba Gato distante do personagem histórico, e se apresentou um personagem mítico que representa idealmente uma vanguarda paulista e seu espírito de progresso, no qual gloriosos feitos do passado frutos de ações supostamente civilizatórias nos são apresentados por meio de uma estética duvidosa.


A construção do mito é tamanha que, para que ele funcione como figura a ser evocada, silencia-se a violência da colonização portuguesa, ignora-se que estes homens muitas vezes sequer falavam português e que muito menos exibiam a fisionomia de um Júpiter desbravador de sertões.


Estamos diante de um ato de disputa e transformação da memória de um país, que por muitas vezes faz questão de se manter amnésico diante dos horrores que comete e sofre, não apenas quanto ao seu passado colonial, como de seu passado recente. O campo do simbólico é extrapolado quando encontramos em lados opostos dessa disputa o movimento ativista negro – que incendeia a estátua – e um empresário paulista – que anuncia (anonimamente) sua intenção de arcar com os custos de sua restauração.


Para Danilo de Oliveira (Biu), do coletivo Revolução Periférica, o fogo na estátua abriu um debate sobre a homenagem aos bandeirantes no país em que “favelado nunca teve voz”. Por sua vez, Paulo Galo afirmou que “as pessoas agora podem decidir se elas querem uma estátua de 13 metros de altura que homenageia um genocida e um abusador de mulheres.” O fogo não danificou permanentemente a estrutura material da estátua, mas feriu profundamente a mitificação dos bandeirantes.


A prisão de ativistas e a criminalização da disputa expõem uma série de aspectos que marcam a relação da sociedade brasileira com a sua história e permanecem vivos no presente: por um lado, o quanto a memória brasileira dominante é resistente a questionamentos e o quanto a elite paulista ainda apresenta sua história particular como nacional. Por outro lado, o quanto agentes populares – como negros, indígenas e mulheres – são sistematicamente reprimidos e invisibilizados em suas trajetórias de luta e o quanto o sistema de justiça brasileiro é seletivo e racista.


Em meio ao debate público cheio de confusões e omissões sobre a disputa da memória brasileira, alguns articulistas apressados compararam o ativismo contra a memória bandeirante às fogueiras nazistas de livros; outros ainda acusaram o coletivo de tentar “apagar a história”. Nada mais longe da verdade. É justamente contra o apagamento da história que se insurgem os que derrubam ícones do colonialismo ao redor do mundo, contra a memória oficial dos “grandes homens”.


Às vezes é preciso dizer o óbvio, e o óbvio no caso da estátua de Borba Gato é que incendiá-la não apaga sua história. A despeito do que se possa fazer com as estátuas como a de Borba Gato, a história dessa personagem e dos usos que se fez dela não desaparece no ar justamente porque existem instituições (museus, arquivos, bibliotecas e universidades) dedicadas a preservar e fomentar pesquisas que avaliem o lugar deste e de outros sujeitos na História. Contudo, esses espaços nos quais a Memória e a História são objetos de pesquisa e preservação (mas também de disputa) são sistematicamente atacados e, nos casos do Museu Nacional e da Cinemateca, consumidos pelo fogo. A destruição daqueles acervos significa concretamente um apagamento, com a perda definitiva da possibilidade de estudar e de fazer uso de determinados aspectos do passado, inclusive para construir outras possibilidades de futuro. Os leitores muito provavelmente já devem ter se perguntado por quê então os incêndios que destruíram os acervos da Cinemateca e do Museu Nacional não catalisaram tamanha agitação dos mesmos setores que reivindicam fervorosamente a manutenção de estátuas e da memória representada por Borba Gato.


Emblemático foi o destino dado à estátua de Colston, levantada em 1893 no centro de Bristol para comemorar a filantropia de Colston junto à comunidade britânica, fomentada pelo seu trabalho como comerciante de escravos no fim do século XVIII. Esta dicotomia foi colocada nos protestos que questionaram a manutenção de sua homenagem no centro de tal cidade. Após ser derrubada e jogada em um canal que leva ao porto de Bristol, a estátua foi abrigada no museu histórico da cidade e colocada deitada para sua exposição, com as devidas explições que contextualizam seus crimes e enriquecimento com tráfico de negros. A estátua está no M Shed Museum, com as manchas das pichações feitas em seu protesto, os quais fazem, agora, parte de sua história. Os críticos que sugerem a preservação de Borba Gato no museu estão dispostos a ver as mudanças que a estátua sofrerá?


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